quarta-feira, 4 de abril de 2012

Uma dose de realidade

A mulher sentada a meu lado
tem o tempo marcado na brancura dos cabelos
e o sangue de índia, bem vermelho, estampado na cara.

Vejo nas veias daquele rosto de mulher
a História de um povo e de um continente;
naquelas veias maltratadas pelo tempo
vejo, abertas, as lindas veias da América Latina.

Quando a mulher chora,
rios de prata lhe correm a face.
Quando sorri,
lhe irrompem vulcões na pele vermelha, pele andina.

A mulher carrega no peito
um sofrimento que não é só dela,
mas de toda a gente
que neste continente vive ou viveu.

É triste o semblante da mulher:
cortado por foice,
demarcado por cerca de arame farpado,
machucado pelo peso implacável da injustiça.

domingo, 1 de abril de 2012

Delírio do verbo

Pombas voando enclausuradas sobre um teto de verde e seiva.
Folhas descaindo do chão para as árvores.
Rosas e violetas brotando nas copas das pedras.
Formigas carregam a manhã nas costas.
O azul do céu é doce como a ilusão.
Insetos me passeiam pelos dedos das mãos.
Nuvens que chovem para cima.
Chuva que apaga estrelas invisíveis.
Nascentes de luz brotando na sombra do nada.
Rios de sol desaguando no mar do chão.
Mar azul e amargo como a solidão.
Beija-flores vermelhos que só beijam corações.
Multidões de silêncio cruzam o espaço.
Árvores dando frutos de vento.
A vida surgindo do pó e ao pó retornando.
O verbo sendo como era no princípio.
O verbo sendo como é desde o princípio.
O verbo delirando.

Ponto final

Vida corrida
Vida imediata
Vida apressada
Pressa de viver ou de morrer
Vida instantânea
Vida automática
Vida fugaz
O tempo não volta atrás
O fim é certo
Certo é o fim
Tão certo pra você quanto pra mim
A vida é assim
Sem vírgulas
Reticências
Travessões
Sem tempo pra interrogações
Exclamações
Mas
Certo como o fim é certo e certo é o fim
São iguais
A vida e este poema
Ponto final
Tem sim.

Vejo

Ei
Céticos
Incrédulos
Pessoas que não acreditam no que vejo
E talvez nem mesmo acreditem que eu seja capaz de ver alguma coisa
Abram bem os ouvidos
Prestem bastante atenção
Vejo sim
Tenho olhos pra ver
Tenho lentes pra focalizar
Lentes de vidro
Lentes de carbono e água
Pra ver as cores que a vida tem
Focalizar imagens em minhas retinas
E em retinas alheias
Pra ver a poesia acontecendo debaixo do meu nariz
Pra ver cegos como vocês
Da pior espécie
Ou seja
Cegos que
Apesar da nítida vantagem biológica sobre seres como eu
Por exemplo
Insistem em não ver
Cegos que
Vendo
Não veem
Ou melhor
Veem
Mas fingem não ver

Apenas um poema

Estou farto da poesia cheia de regras,
da minha poesia cheia de regras.
Vontade de rasgar páginas anteriores deste caderno.
Vontade de que as malditas regras se fodam.
Vontade de não dividir meu poema em estrofes
e simplesmente deixá-lo aparecer naturalmente,
deixá-lo ser o que ele é,
seja lá o que ele seja.
Na verdade, quero ser como o homem -
de cabelos tão brancos e lisos -
que aparece no vídeo:
escrever poucos poemas
e ser paciente, esperar que os poemas venham até mim.
A partir de hoje,
só escrevo quando convier a mim e à poesia.
Não mais rodarei feito barata tonta,
mais perdido que cego em tiroteio,
por campos poéticos a que não pertenço
e talvez nunca pertença.

Quereres

Quero ser poeta de noites intermináveis
e amores que sejam eternos enquanto durarem,
poeta de vida vivida
e não, poeta de vida (in)feliz.

Não quero ser poeta de cânone,
ver meus poemas uniformizados
e meus versos acorrentados:
prefiro minha poesia esculhambada e maltrapilha.

Na poesia, não quero ser um deus
e sim, humano demasiado humano,
comer arroz, feijão e farinha,
ter medo da morte e viver como se não tivesse.

Na vida, quero poetar, amar e brincar;
rimar de propósito e não gostar,
rimar sem querer e adorar,
e rir, rir alto, rir muito, morrer às gargalhadas.

Poema silencioso

...

Duas rosas

Ai que saudadinhas não sei de que,
saudadezinhas não sei de quem.
Serão saudades dessa ou daquela?
Saudades de uma ou da outra?

Tranquei aquela porta por dentro
como se deixasse uma vida inteira do lado de fora.
E como era linda aquela vida,
o amor se dando, feito bênção, em forma de menina-mulher.

A outra porta não fui eu que abri:
foi menina-morena, menina-flor que se abriu pra mim.
E como era linda aquela flor,
flor-florzinha, flor-fulô.

De onde é que vem mesmo
isso de chamar mulher de flor?
Acho que vem de dentro de mim,
lá bem fundo no peito e na alma.

Da noite pro dia, passei de uma
a duas meninas-mulheres, meninas-morenas, meninas-flores.
Tentei então partir o coração, dividir os amores
e os abraços e beijinhos de querer bem.

Consegui: fiz meu coração partido.
E, vendo meu peito fatalmente dividido,
sentei, chorei, me afoguei numa taça tinta de vinho.

Tinha agora duas rosas na vida.
E rosa que é rosa perfuma,
mas é cheia de espinhos.

Soneto para uma flor

De repente, dos olhares cruzados
Fez-se a rosa ardente da paixão
E fincou-se a raiz da confusão
No solo do meu peito já cansado.

De repente, dos corpos enlaçados
Fez-se o amor, fez-se a interrogação,
E a bagunça do meu coração
Fez sentido, assim feito um soldado.

Agora, flor, não sei o que fazer:
Não sei se em lágrimas me desfaço
Ou se a tuas pétalas me entrego.

Mas, se quiseres, com meu pranto rego
Nosso amor de aço e me refaço:
Fico pronto para de amor morrer.

Libertação

De mãos dadas com as grades
de uma janela que não me pertence,
vejo perderem suas tintas os muros da cidade,
vejo o tempo passando pelas ruas,
vejo, em outras janelas, pessoas nuas,
vejo a mentira e vejo a verdade.

Encarcerado na prisão em que me pus,
vejo, arrebatado pela razão -
em preto e branco -, o filme do meu coração
e me liberto:
saio das trevas e conheço a luz.

Preto no branco

De caneta em punho,
derramo sobre o papel
minha angústia e meu sofrimento,
me liberto das pressões do mundo,
tiro das costas o negro piano de cauda
que lá é posto pela vida todo santo dia.

De caneta em punho,
arranco lágrimas e sorrisos,
crio mundos, fundo reinos,
brinco de palhaço e de bandido,
brinco de Deus.

De caneta em punho,
sinto o coração bater,
ora mais rápido, ora mais devagar,
me sinto vivo,
olho na cara do mundo
e boto os pingos nos is,
coloco preto no branco.

Guerra e Paz

Guerra, guerra e mais guerra...
Guerras frias e guerras radioativas,
guerras vermelho-sangue, guerras amarelo-ouro.
Pra que tanta guerra, meu Deus?

Guerras irracionais, petroguerras,
guerras em nome de Deus e do diabo,
guerras profanas e guerras santas.
Tem guerra pra todos os gostos!

É tanta guerra que o coração do mundo
vai deixando de querer bater.

É tanta guerra que a Terra
prefere morrer.

Chega de guerras!
Declare-se guerra às guerras
que é pro mundo viver em Paz.

Mar da Bahia

Ah! que lindo o mar da Bahia,
suas águas azuis como o céu
e claras como o diamante,
seus amores impossíveis e seus sonhos naufragados:
segredos que guarda a sete chaves em seu coração.

São mesmo diferentes as águas baianas.
Nelas, mais branca é a espuma
e mais doce é o sal.
Nelas, se escondem raízes
da América, da África e de Portugal.

É assim o mar da Bahia:
flores vermelhas, pretas e brancas
pintando as águas-de-Todos-os-Santos
com amores e sonhos de carnaval.

Viagem

Carapaça metálica sobre rodas plásticas, rodas elásticas.
Em cima o azul, embaixo o asfalto,
no horizonte o destino.

Faixa amarela fendendo a estrada.
Contínua, descontínua, contínua, descontínua...
Quem dera o tempo fosse essa faixa!

No caminho banana, coco, cana, café...

No caminho cachorro, vaca, hômi, muié...

No caminho roça queimada e mata por queimar,
preto e branco, senhor e escravo,
espaço e tempo, descida e subida.

Aonde é que esse caminho vai dar?

Poema urbano

A tela em minha janela
me empresta uma visão de mundo losangular
que combina com a geometria pétrea dos edifícios
e seus orifícios -
portas de acesso a um sem-número de universos particulares.

É de minha janela no décimo andar
que assisto às pessoas disputando espaços
com automóveis, imóveis, móveis,
com ruídos de ferro e de aço,
com o monstro por elas mesmas criado
e cujas células, unidades menores de sua vida,
são a mais pura expressão da morte.

Madrugada

É madrugada na Cidade da Bahia
e os tambores estão calados:
o silêncio impera nas ruas.

A esta hora, a cidade se transforma,
se transmuta em painel cubista
cujos traços e riscos revelam que o artista
é gênio da estirpe de um Picasso.

Alternâncias de claro e escuro
esculpidas em pedra fria
ditam a forma e a beleza do mosaico,
que, além de urbano, tem a sorte de ser baiano.

Que coisa linda este mosaico:
a escuridão da madrugada
combinando com a pele negra da Bahia
e o espectro de luzes multicores
realçando a claridade de sua alma.